A China parece estar no auge de uma febre de reformas e remodelações. Não apenas as ruelas (hutongs) nos centros históricos, mas também as fábricas abandonadas estão se tornando novos pólos tecnológicos ou culturais, e mesmo os edifícios com risco de colapso estão sendo reformados para prolongar sua vida útil. Por que isso está acontecendo? Quem está investindo? Como isso pode acontecer em um país onde você não pode comprar propriedades?
Nesta edição do Editor's Talk, nossas editoras do ArchDaily China compartilham o que pensam sobre essa febre de remodelações nas grandes cidades daquele país, que há anos passa por um acelerado processo de desenvolvimento.
Nicolas Valencia: O que está acontecendo na China que o Uso & Reuso parece ser um tema em foco no momento?
Han Zhang: Existem várias razões para este tema estar em evidência. O mais importante é a lentidão do governo na liberação de terras para investidores e seus empreendimentos. Nas cidades mais desenvolvidas, não há mais nenhuma terra pública sendo liberada para desenvolvimento, levando o mercado a migrar para a reforma do estoque existente. Esta é provavelmente uma razão que a maioria das pessoas de fora da China desconhecem. Há muitas motivações para isso do ponto de vista do governo: resfriar a bolha imobiliária, a falta de terrenos nas grandes cidades e o enfrentamento da séria questão do estoque de imóveis de baixa qualidade na China nos últimos 50 anos.
Shuang Han: Nos últimos 70 anos da China muitos edifícios foram construídos e agora estão enfrentando problemas, portanto projetos de reformas são muito populares na cidade e no interior.
Milly Mo: Sim, acredito que seja em parte por causa do rápido desenvolvimento das megacidades chinesas desde os anos 1980. Um monte de edifícios desatualizados e de baixa qualidade precisam ser substituídos. A arquitetura construída nos anos 1980 e 1990 não conseguiu acompanhar o desenvolvimento econômico em rápido crescimento nas cidades, portanto há muitas reformas acontecendo para satisfazer as novas necessidades funcionais.
HZ: Enquanto os edifícios no ocidente são geralmente projetados para 100-200 anos de uso, a maioria dos edifícios construídos após a abertura da China foi construída para 30 a 50 anos de uso. Portanto, temos agora uma grande parte do estoque de imóveis à beira do colapso.
Além disso, à medida que a China se afasta da indústria pesada, uma enorme quantidade de instalações industriais está sendo abandonada. Seguindo as tendências internacionais de reaproveitamento de terrenos industriais, o governo chinês e os investidores estão vendo o potencial nesse segmento de mercado.
MM: Além disso, as normas para construção de edifícios não eram tão completas naquela época. Portanto, alguns edifícios construídos nos anos 1980 e 1990 estão à beira do colapso.
NV: Quem está investindo nesses edifícios com risco de colapso?
HZ: Eu acho que é uma progressão natural para o público em geral o desejo por alguma individualidade em suas vidas pessoais, seja em suas casas, escritórios ou espaços de lazer depois de crescer em um país onde ser "igual" era o status padrão.
MM: Principalmente empresários, enquanto o governo decide revitalizar as áreas com edifícios assim. Os desenvolvedores correram para adquirir os terrenos porque há um enorme potencial de lucro devido à valorização do preço da terra. Eles comprariam os prédios à beira do colapso e realizariam um completo processo de demolição e reconstrução, mas hoje em dia cada vez mais arquitetos optam por renovar edifícios mais arriscados e de pequena escala como experimentos.
HZ: Além disso, à medida que mais e mais arquitetos chineses retornam de seus estudos no exterior, eles trazem de volta novos conhecimentos e possibilidades interessantes para o ambiente construído para o público em geral. Isso, juntamente com o poder das mídias sociais e da televisão, foi capaz de ampliar as perspectivas das pessoas sobre o que é possível para seus próprios espaços, grandes ou pequenos.
SH: A reutilização adaptativa permite que as cidades olhem de uma forma nova para os espaços antigos, especialmente aqueles que estão abandonados ou localizados junto a zonas costeiras industriais em dificuldades. Também pode ser uma maneira de preservar o espaço histórico e reduzir a expansão urbana; para o governo a reutilização pode ser muito lucrativa. Além disso, os arquitetos são viciados em descobrir os valores culturais por trás da arquitetura histórica.
NV: Shuang Han comentou sobre esse vício atual em procurar o aspecto cultural nas reformas. Existe alguma narrativa cultural por trás disso?
HZ: No início, havia arquitetos e artistas que viam significado cultural nesses edifícios antigos. Foi através de suas reformas que o público também aderiu à essa ideia.
MM: Eu acredito que os arquitetos são atraídos pela renovação de fábricas e espaços industriais porque é uma chance muito rara para eles experimentarem em espaços tão grandes. Devido à densidade e ao custo para construir em grande escala, a maioria dos arquitetos não teria a chance de projetar uma megaedificação completamente nova. Portanto, eles se concentram nessas renovações. Afinal, é mais barato renovar do que construir do zero. Além disso, muitos arquitetos são simplesmente fascinados pelo valor histórico por trás de um edifício industrial, que simbolizam os velhos tempos difíceis em meados do século XX.
NV: Você identifica alguma diferença nesse processo nas maiores cidades ou nas diferentes regiões da China?
SH: A arquitetura de reutilização é o processo de dar novo uso aos edifícios que sobreviveram a seus propósitos originais e, ao mesmo tempo, manter suas características históricas. Então eu acho que não há grande diferença nas reformas do Norte e do Sul.
HZ: Precisamos explicar o contexto e as mudanças sociais e culturais relevantes nos últimos 50 anos para que os leitores entendam como as reformas funcionam na China.
Os primeiros casos de reforma de antigos espaços aconteceram antes que os governos central e regional tivessem políticas para essa questão. Indivíduos ou pequenos empreendedores enxergaram potencial em espaços antigos como fábricas e instalações de armazenamento e aplicaram direitos de locação às propriedades na esperança de que terão valor no futuro — por favor observe que na China você não pode comprar propriedades, apenas direitos de locação. Todas as terras, com exceção de glebas cultivadas, pertencem ao governo.
Como esses indivíduos alugaram as propriedades para artistas e designers que viram valor nelas, o primeiro lote de reformas aconteceu. No entanto, como os órgãos governamentais viam o potencial nesses distritos, começaram lentamente a retomar os direitos de locação das propriedades, e os departamentos governamentais que costumavam operar essas propriedades, como a companhia elétrica da cidade, começaram a se adequar para se tornarem organizações de gestão de edifícios dessas propriedades. Algumas organizações governamentais até contrataram arquitetos famosos como Sasaki para o Distrito 798 para projetar seu masterplan.
A segunda onda de reformas que vemos hoje é em grande parte impulsionada por empreendedores. Como as terras recentemente liberadas acabam rápido nas principais cidades, o governo e os empreendedores têm o mesmo interesse em desenvolver os espaços restantes. Hoje, a maioria deles é feita numa colaboração entre eles. Ao mesmo tempo, há alguns arquitetos proeminentes que vêm promovendo a reforma de grandes instalações industriais para uso público, como o Atelier Deshaus e Liu Yuyang, em Xangai. Eles têm sido fundamentais para orientar o governo e os empreendedores na direção de um projeto mais inclusivo nas reformas.
MM: Eu acho que, como as reformas começaram primeiro no norte, os projetos nas cidades do sul, como Shenzhen, são mais comercializados porque os arquitetos / desenvolvedores já têm expectativas realistas sobre as reformas, portanto seus edifícios têm uma função muito clara e um objetivo a alcançar. Já os arquitetos do norte não sabiam bem o que esperar quando começaram a fazer reformas.
NV: Então, parece mais intuitivo no norte, enquanto no sul é mais estruturado, uma vez que lá o know-how já está sistematizado, não é?
HZ: Definitivamente. E o norte é mais político, enquanto o sul é uma região mais focada em sua vocação comercial. Sempre foi assim ao longo da história.
NV: É bom saber que o mundo não sabe como esse país é grande...
HZ: Com certeza.
NV: Você identifica alguma tendência entre os não-arquitetos que fazem suas próprias reformas? Como um movimento de de reformas DIY fora do âmbito acadêmico, da mídia.
HZ: 80% das pessoas fazem isso tirando fotos para as mídias sociais enquanto apontam e orientam os próprios contratados. Muitas vezes, leva a renovações de Instagram: ficam bem em fotos, mas são desastres absolutos na vida real.
MM: Enquanto isso, fazer reformas por conta própria é raro nas cidades porque não temos terras de propriedade privada na China, a maioria dos projetos assim é no campo, com menos regulamentações, ou como projetos de interiores.
NV: Parece que temos muitas reflexões a fazer!
HZ: Eu realmente espero que as pessoas possam entender melhor a China através das nossas Editor's Talks. Como você mencionou antes, as pessoas não têm ideia do contexto social da arquitetura na China. Não deve ser avaliado da mesma forma que outros projetos, como uma seleção de imagens no Pinterest.
NV: Antes de terminar esta conversa, vocês recomendam acompanhar o trabalho de algum arquiteto nesta área?
HZ: Liu Jiakun, mas o melhor é o Atelier Deshaus.
MM: Liu Yuyang
SH: Zhang Lei (AZL) e Zhang Pengju.